sábado, 19 de janeiro de 2019

A diferenciação pedagógica na sala de aula

A diferenciação pedagógica na sala de aula

A ESCOLA QUE NUNCA TIVE·SEXTA-FEIRA, 18 DE JANEIRO DE 2019

A inevitabilidade de uma escola para todos, que respeite e valorize as diferenças naturais de cada um e que forme cidadãos plenos para os desafios do século XXI.

1.º Pressuposto: Num mundo onde se reconhece que não há dois seres iguais e em que a escola deve formar todos os cidadãos de forma plena para a emancipação intelectual, cultural e social, não há lugar para a expressão ingénua: “Esta turma é heterogénea!”.

2.º Pressuposto: A diferenciação pedagógica na sala de aula implica que o professor se afaste do modelo do ensino simultâneo tradicional, em que “dá” a mesma lição e os mesmos exercícios para todos ao mesmo tempo como se fossem apenas um (mito da homogeneidade)*.

A partir destes dois pressupostos, o direito de termos uma escola para todos é, em primeiro lugar, uma imposição que todos nos devemos exigir, como cidadãos responsáveis e defensores dos valores mais básicos de uma sociedade que se quer emancipada, justa e humanizadora. Uma escola que se quer inclusiva exige-nos também o dever de reconhecer o direito à diferença e aos ritmos diferenciados a que cada cidadão tem direito. Se não se reconhecer e interiorizar este direito e dever, muito dificilmente se conseguirá compreender a mais valia da “inevitável” heterogeneidade e as vantagens de diferenciar o trabalho de aprendizagem na sala de aula. Será que já nos distanciamos do que nos chamava à atenção Pierre Bourdieu, em 1966, em que uma das maiores violências da escola, como promotora de grande exclusão, é “a indiferença à diferença”?

Lutar por uma escola para todos, onde se contemplem as diferenças e não se agravem as desigualdades, deve ser algo mais do que elementar e não, algo visto como um “desafio nobre” ou uma ideia “romântica” (como muitos ainda o veem). É, sublinhamos, também, acima de tudo, garantir que se cumpra a lei que prevê o sucesso de todos os alunos em escolaridade obrigatória.

Apesar deste texto ser declaradamente sobre a diferenciação pedagógica realizada na sala de aula, queremos também, antes de mais, assumir que não nos revemos no que muitos dizem ser diferenciação pedagógica, quando se referem aos vários cursos alternativos ao currículo regular oficial que estão presentes em muitos agrupamentos escolares. Estes cursos, a nosso ver, servem, sobretudo, para as crianças e jovens que para lá são “empurradas”, tendo em conta o seu já percurso de insucesso ou, pior ainda, a ideia defendida por parte de muitos adultos do insucesso “inevitável”, que estes mesmos alunos terão a curto prazo, se continuarem em turmas com o currículo regular oficial. Não escondemos, porém, que estes cursos com uma vertente mais prática e com um foco menor na reprodução do conhecimento, refletem o facto de que a escola, nos moldes como está organizada, pouco serve a “vida” e o gosto e sentido pela aprendizagem ao longo da mesma. Será tendencioso da nossa parte, concluir de que tudo o que tem sido feito e discutido a respeito do novo perfil do aluno e das competências-chave para o século XXI, resulta também do insucesso da organização escolar atrás referida? Independentemente de tudo, defendemos que todos merecemos ter uma escola organizada pedagogicamente, que permita que ninguém desista!

Por outro lado, apesar do reforço da homogeneidade não ser uma opção para nós, para se aceitar e adaptar à heterogeneidade, há ainda outros equívocos que interessam compreender, para que as diferenças sejam realmente uma mais valia. Nesse sentido, agrupar alunos por níveis de aprendizagem e dificuldades, tal como acontece em vários Projetos que se continuam a desenvolver em inúmeras escolas, não é mais do que conseguir uma homogeneidade relativa, resultante de um processo declarado de seleção. Um dos principais argumentos evocados, em traços gerais, é que os bons alunos melhoram mais quando estão todos juntos e que os alunos mais fracos terão um melhor apoio para progredirem se estiverem igualmente agrupados. Por outras palavras e sem grandes “rodeios”, a nosso ver, são Projetos que promovem a exclusão (e, sobretudo, o descrédito da heterogeneidade como um recurso valioso para todos evoluírem), mas com títulos sugestivos, que mais não passam do que “invólucros” com um selo de suposta inovação. Estão a imaginar como se sentirá uma criança, por exemplo, que é retirada da sua turma aquando do trabalho em Matemática e é agrupada com mais crianças com essas dificuldades? Mesmo que lhe digam que é para o seu “bem” e que poderá em breve “passar” para o grupo dos que “mais sabem”, só quem não se imaginar no seu lugar é que achará que é uma ótima ideia. Todas as crianças gostam de trabalhar com os colegas da turma e, apesar das dificuldades de cada um, ninguém gosta de ser “tratado à parte”. Para nós, que somos fiéis convictos de que separar é excluir e que são várias as consequências negativas na autoimagem de quem se sente discriminado, sentir-se aceite no seu grupo é condição essencial para o desenvolvimento de qualquer pessoa.

Importa também perceber que a diferenciação não é só para os alunos com mais dificuldades, mas sim para todos os alunos de uma turma, visto que todos são diferentes e é na gestão dessa diferença que, mesmo com a incumbência de se aprender um currículo obrigatório, sustentados pela cooperação, todos podem ficar realmente a ganhar. Nesse sentido, também interessa perceber que diferenciação na sala de aula não é o mesmo que um ensino único e, exclusivamente individualizado, em que o professor se ocupa de um aluno de cada vez. Para além do professor não se poder considerar como a única fonte de aprendizagem dos alunos, a solução não pode estar em organizar uma turma toda numa relação a dois, o que se tornaria impraticável, já que o professor não poderia estar em toda a parte.

Retomando os dois pressupostos do início do texto, concluímos então que:
Se todos não têm os mesmos conhecimentos, a mesma relação com o saber, os mesmos interesses, os mesmos modos de aprender, há que organizar as práticas pedagógicas para que a ação educativa se centre no trabalho diferenciado de aprendizagem dos alunos em cooperação e não no ensino simultâneo dos professores.

Para definirmos o que entendemos por diferenciação pedagógica na sala de aula, é importante, antes de mais, descrevermos os princípios pedagógicos que norteiam o contexto onde achamos que esta se deve desenvolver. Assim, numa perspetiva sociocultural, em que se valoriza a origem social do conhecimento, ou melhor, que este, se constrói por meio da atividade conjunta em cooperação dialogada (Wertsch, 1995), é de todo importante uma turma organizar-se com o seu professor como uma comunidade de aprendizagem. Organizada cooperativamente, onde todos cuidam das aprendizagens de todos (Niza, 2017) e em que os alunos têm uma participação ativa e democrática na gestão cooperada do currículo, do espaço, dos materiais e dos tempos de aprendizagem. Paralelamente, ao contrário do ensino simultâneo tradicional, onde o professor chega a ocupar mais de metade do tempo em lições para todos, valoriza-se também um ambiente de livre expressão dos alunos, onde através da fala e da escrita interativa o conhecimento é apropriado conjuntamente. Nesta perspetiva, pode considerar-se a aprendizagem como dialógica (Wells, 1999), já que se reconhece que o conhecimento é construído no discurso entre as pessoas que fazem coisas juntas (Franklin, 1996).

Apesar de referirmos que o conhecimento se constrói conjuntamente (de forma interativa), interessa reforçar que tal não acontece de uma forma expositiva, em que o professor dá uma aula para todos e os alunos ouvem, alguns respondem às suas perguntas, treinam alguns exercícios, memorizam, eventualmente, e realizam testes onde reproduzem os supostos conhecimentos.

O caminho de instituir uma comunidade cooperativa em que se valorizem as diferenças não é, contudo, fácil, visto que quando se inicia o trabalho com turmas que estão ainda num paradigma de competição e de comunicação vertical com o professor, o trabalho de parcerias para os alunos com menos dificuldades, por exemplo, pode ser sentido por estes como uma “perda de tempo”. No entanto, quando estes entendem que uma das melhores formas de aprender é explicar algo a outra pessoa (Bruner, 1996), e ao mesmo tempo que “vivem” a regra máxima da cooperação (em que cada um dos membros de uma comunidade só atinge o seu objetivo quando cada um dos outros o tiver atingido também), a sua atitude muda e a construção cooperada das aprendizagens começa a fazer sentido e a dar frutos. Por outras palavras, o sucesso de um, passa a ser o sucesso do grupo. Aliás, como nos recorda Vigotsky (1996), o desenvolvimento do indivíduo no que ele é, ocorre através do que ele produz para os outros, visto que nesse esforço para formular as suas ideias para os outros, é a forma mais eficaz de se esclarecer as ideias para si mesmo. Por outro lado, num trabalho a pares, a criança com mais dificuldades vai colocando questões àquele que “teoricamente” sabe mais do tema e que o está a apoiar e, nesse sentido, é através dessas interpelações que ambos vão construindo e reconstruindo entendimentos comuns, fruto da construção colaborativa de conhecimento (Wells, 1999).

Sublinhado já o valor do trabalho entre alunos, tão indispensável como o do professor, para além ainda do valor da fala interativa entre ambos, e alunos entre si, por diferenciação pedagógica na sala de aula entendemos as formas variadas do professor organizar o trabalho de aprender e de ensinar o currículo oficial. Para que cada criança, de acordo com as suas características, usufrua ao máximo dos diferentes recursos disponíveis, são várias as modalidades em que trabalham, de acordo com os diferentes tempos de atividade instituídos: trabalho autónomo contratualizado; trabalho a pares ou em pequenos grupos; trabalho apoiado pelo professor em interação dialogada e individualizada; trabalho em grande grupo com o apoio do professor na construção dialogada e cooperada de conceitos (Niza, 2017).

Um exemplo prático de um tempo de atividade que ilustra a diferenciação pedagógica pode ser o Tempo de Estudo Autónomo, que se destina a todo o trabalho de produção, de estudo, de treino ou de revisão, que permite o desenvolvimento e apropriação das aprendizagens curriculares (Niza, 2009). No 1.º ciclo ocorre diariamente, tem a duração de uma hora e é guiado por um Plano Individual de Trabalho, onde estão inscritas as atividades que as crianças no início da semana planeiam e durante a semana realizam, de acordo com as suas necessidades e interesses curriculares. O objetivo é promover o trabalho autónomo, o trabalho a pares e o apoio individual do professor às crianças com mais dificuldades. Os referidos planos são avaliados no final da semana em reunião coletiva, e a partir da autoavaliação e das sugestões dos colegas e professor, planeiam-se novos planos na semana seguinte, tendo em conta todas as indicações de melhoria. É na verdade um tempo forte de diferenciação das aprendizagens, onde todos os alunos desenvolvem a sua autonomia, responsabilidade e apropriam-se do currículo de acordo com as suas necessidades e ritmos. Para além disso, é um tempo que permite que o professor apoie individualmente e de forma dialógica as crianças que apresentam dificuldades escolares. Os professores de educação especial e os professores de apoio educativo têm também neste tempo um momento fundamental para exercerem as suas funções de forma inclusiva, já que pretendemos que os alunos com maiores dificuldades ou com alguma limitação se sintam incluídos e capazes (tal como os restantes colegas da turma) de terem a possibilidade, a responsabilidade e a autonomia de poderem cumprir, cada um, o seu Plano Individual de Trabalho.

Outro exemplo prático de diferenciação pedagógica, pode ser aquando da Comunicação de um Projeto realizado por um grupo de alunos (deve haver um tempo semanal para o efeito), o professor disponibilizar, antecipadamente, informação sobre esse mesmo tema para os colegas que irão assistir a essa comunicação. O objetivo é possibilitar a esses alunos um maior nível de conhecimento sobre o tema a apresentar, para que a comunicação ocorra de forma mais participada e o posterior debate seja mais profícuo para todos. Posteriormente, os alunos que ainda necessitem, terão a possibilidade de no Tempo de Estudo Autónomo poderem estudar e aprofundar mais esse tema. Portanto, a ideia é que todas as crianças, de acordo com as suas necessidades e ritmos, possam ter a oportunidade de usufruir de vários recursos (materiais; colegas; professor) e tempos de atividade diversificados (Comunicação de Projetos e Tempo de Estudo Autónomo...) para se apropriarem de forma significativa das aprendizagens curriculares. Ou seja, uns utilizarão mais recursos e necessitarão de “passar” por mais tempos de atividade diversos para realizar as aprendizagens necessárias, outros, por outro lado, farão percursos de forma mais autónoma, usufruindo, eventualmente, de menos recursos e de menos tempo para a apropriação dessas mesmas aprendizagens.

Para que esta perspetiva de diferenciação pedagógica na sala de aula funcione de forma mais eficaz, reforçamos de novo a importância de desenvolvermos uma comunidade de aprendizagem que agregue alunos e professor num Projeto comum de aprendizagem, onde as crianças participam ativamente na gestão cooperada das aprendizagens curriculares. Pois só a partir de um processo de planeamento, de regulação e avaliação partilhado, em que cada criança utiliza um Plano Individual de Trabalho, é que se pode assegurar percursos diversos e ritmos diferenciados, apoiados, contudo, por uma organização cooperativa. Porque se pretendemos diferenciar sem ter uma organização cooperada que promova a implicação dos alunos em objetivos comuns, arriscamo-nos a promover a competição e a aumentar as desigualdades. Daí dizermos que a diferenciação pedagógica só faz sentido com uma forte organização cooperada que a sustente.

Por último, assumimos, naturalmente, que a diferenciação pedagógica na sala de aula implica, para além de um novo papel do aluno, um novo ofício de professor, enquadrado, como é óbvio, se nos permitem, fora do “paradigma da homogeneidade”. Para que sintam as diferenças naturais das crianças e jovens como um forte recurso cultural e de aprendizagem e não como um obstáculo, os professores não podem ser formados de forma a apenas estarem“preparados” para “dar” lições ao indefinível “aluno médio”. Porque quando se fala de diferenciação pedagógica na sala de aula, fala-se, sobretudo, do direito de todos (com as suas diferenças) terem uma escola de qualidade. Uma escola que não exclua ninguém, uma escola, efetivamente, inclusiva, do e para o século XXI.

Referências bibliográficas:

Bourdieu, P.(1966). L école conservatrice. L inégalité sociale devant l école et devant la culture. Revue française de sociologie, n.º 3, p. 325-347.
Bruner, J.(1996). Cultura da educação.Lisboa: Edições 70.
Franklin, U. (1996). “Introduction”, conferencia “Towards an Ecology of Knowledge”, University of Toronto.
Niza, S.(2009). Um tempo para o estudo autónomo na sala de aula. Escola Moderna, MEM, 34, (5.ª série), p. 3-4.
Niza, S.(2017). A diferenciação pedagógica: alguns equívocos. Escola Moderna, n.º 5 (6.ª série), p. 7-9.
* Perrenoud, F.(1995). La pédagogie à l école des différences. Paris: ESF éditeur.
Vygotsky, L.(1996). A Formação Social da mente. São Paulo: Martins Fontes.
Wells, G.(1999). Dialogic inquiry: Toward a sociocultural practice and theory of education. Cambridge: Cambridge University Press.
Wertsch, J.(1995). The need for action in sociocultural research. In J. V. Wertsch, P. del Rio e A. Alvarez (eds.) (1995). Sociocultural studies of mind. New York: Cambridge University Press, p. 56-74.

Fonte:
https://www.facebook.com/notes/a-escola-que-nunca-tive/a-diferenciação-pedagógica-na-sala-de-aula/349210572476057/

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